CEBS E REDES DE COMUNIDADES
- Uma pesquisa a serviço da Igreja dos pobres -
Recentemente concluí o mestrado em teologia sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE) na cidade de Belo Horizonte. A intenção não se reduziu à aquisição de diploma, mas, acima de tudo, refletir, a partir da experiência pastoral acumulada, sobre algumas inquietações teológicas suscitadas pela ação nas comunidades. Partilhar com vocês da Fraternidade Secular alguns fragmentos dessa pesquisa nos permite aprofundar o debate atual acerca do tema das redes de comunidades. Após o aprofundamento dessa pesquisa a ser continuado no doutorado, proponho-me a publicá-la. Aqueles/as que quiserem tecer suas críticas, fiquem à vontade. Falo nesse artigo da cidade onde trabalhei e culmino na descrição das minhas conclusões nesse trabalho. Naturalmente apresento algumas motivações pelas quais me propus a investigar o tema.
Santa Maria (DF), início do novo milênio, multiplicam-se várias comunidades cristãs. Observa-se a efervescência religiosa somada à esperança de dias melhores. Convive-se com a violência urbana e a pobreza. De outro lado, percebe-se a coragem e o entusiasmo de um povo lutador. A Igreja católica, presente nesse contexto, procura encontrar respostas pastorais adequadas às exigências da evangelização. Opta-se pela formação de redes de comunidades como modelo eclesial a fim de responder a tais desafios. Observa-se a consolidação da dinâmica ministerial da Igreja, do protagonismo dos leigos, da ação missionária, do interesse pela formação, da opção pelos pobres, enfim, pelo menos, em circunstâncias locais, a estruturação de uma parcela da Igreja particular organizada em CEBs. As redes de comunidades em Santa Maria conviviam com o modelo paroquial, no território da Paróquia São José. A caminhada nos sete anos de trabalho nessa paróquia, somada às diversas experiências pastorais acumuladas na última década[1], despertaram nosso interesse em sistematizar teoricamente a eclesiologia das CEBs na perspectiva das redes de comunidades. Atualmente, em muitas dioceses brasileiras, implanta-se novo modo de organização da vida da Igreja particular à maneira de tais redes. À luz dos escritos de Faustino Teixeira[2] e do material produzido nos Encontros Intereclesiais, desenvolvemos, neste trabalho, a eclesiologia das CEBs, como rede de comunidades, que supere a forma institucional das paróquias na esteira da concepção de Igreja como Povo de Deus do Concílio Vaticano II. Com as CEBs, inaugura-se novo modelo eclesial, mais participativo, que favorece o protagonismo dos leigos, reconhece o papel das mulheres, permite outra concepção ministerial e possibilita maior inserção no mundo face aos atuais desafios da globalização com o engajamento político e as diferentes formas de inter-relacionamento social. O Concílio Vaticano II, realizado entre os anos de 1962 a 1965, inaugura novo tempo na vida da Igreja. Explode uma virada eclesiológica. Entre os seus diferentes aspectos, destaca-se maior abertura de diálogo com o mundo, com as culturas e com as demais religiões. Na busca de realizar tal objetivo, a Igreja repensa a liturgia e o modo de transmissão da fé e define-se como Povo de Deus. Afirmam-se a colegialidade episcopal, a importância da Igreja particular e a inculturação da fé nos meios de evangelização.
Na América Latina, desde a realização do Concílio Vaticano II, os bispos ocupam-se da recepção criativa do Concílio na América Latina. Assim dizia D. Manuel Larraín[3], na etapa final do Concílio: “o que vivemos é impressionante, mas, se, na América Latina, não estamos muito atentos aos nossos próprios sinais dos tempos, o Concílio passará ao lado da nossa Igreja, e quem sabe o que virá depois”[4]. As Conferências Gerais do Episcopado Latino Americano, em especial Medellín e Puebla, e, no Brasil, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) configuram-se como os principais instrumentos da recepção do Concílio em nosso continente. Nessas conferências, além de os bispos pensarem a recepção prática do Concílio, a partir da realidade de opressão e sofrimento do povo, assumem a evangélica opção pelos pobres. No âmbito local das dioceses, as CEBs significam sinais de Deus no novo jeito de ser Igreja; desabrocha-se nova eclesiologia do Povo de Deus. As CEBs caracterizam-se como pequenas comunidades, no protagonismo exercido pelos leigos, no modo de celebrar as liturgias, no compromisso com a justiça social, pela relação existente entre fé e vida e através da leitura popular da Bíblia. Por outro lado, percebe-se o modelo paroquial inadequado à eclesiologia proposta pelo Concílio Vaticano II.
Na dissertação tratamos das redes de comunidades a partir da eclesiologia de Faustino Teixeira e do material produzido nos Encontros Intereclesiais das CEBs. No primeiro momento, recorremos a autores que tratam das redes em outras ciências. As redes apresentam-se como a forma atual da organização da sociedade em diversos meios. Superam-se os modelos verticais e amplia-se o nível de relacionamentos. Desse modo, reconhece-se a pluralidade e estabelecem-se novas formas de gestão. A Igreja, desde o Concílio Vaticano II, busca dialogar com a modernidade e atualiza o modo de agir segundo as exigências de cada época. As CEBs no Brasil representam novo modo de ser Igreja inaugurada pelo Concílio. Organizar a Igreja em redes de comunidades significa atualizar a compreensão eclesial tornando-a flexível, dialógica e ministerial. Permite-lhe participar ativamente da vida social e estabelecer relações mais próximas e efetivas com a sociedade.
A contribuição dessa pesquisa pode oferecer diversos elementos. Desde a proposta para o conceito de redes até a sistematização prática das consequências de tal modelo eclesiológico. O próprio interesse em retomar a pesquisa de Faustino Teixeira e os documentos dos Intereclesiais configura-se como atual e relevante. A novidade revela-se em encontrar nessas fontes elementos que permitam pensar as redes de comunidades.
A realidade mostra a necessidade de constituição de redes. Tanto Faustino Teixeira quanto o material dos intereclesiais, oferecem instrumentos eclesiológicos para pensar a Igreja em redes de comunidades. Adotamos o método Ver-Julgar-Agir. No primeiro capítulo, tratamos da contextualização e origem das redes. Estas, vistas nos aspectos econômicos, políticos e culturais. Procuramos mostrar os diversos lugares onde se utilizam as redes. Desse modo, ampliam-se os horizontes de percepção dos rumos assumidos na sociedade. As mudanças provocadas pelo paradigma das redes despertam nas organizações a necessidade de rever suas estruturas.
Nos conceitos apresentados, resultantes de todo o contexto, propomos as redes como o conjunto de relações entre indivíduos, grupos e organizações de natureza não hierárquica e interdependente. Elas estabelecem entre si relações duradouras a fim de atingir metas comuns e valorizam aspectos como autonomia, flexibilidade e cooperação entre os envolvidos. Vimos como características das redes a constituição de dinâmica relacional, relações duradouras, fluidez, estrutura policêntrica e pluralidade de atores envolvidos. Organizam-se por complementaridade, autonomia, interdependência, flexibilidade e as redes possuem seus componentes básicos autogovernados e autossustentados.
A partir da concepção “Povo de Deus”, concebida à Igreja pelo Concílio Vaticano II, averiguamos, nas CEBs, a recepção viva e criativa deste novo modo de ser Igreja. Faustino Teixeira oferece diversos elementos para entendê-la. O autor, além de explicitar a importância e significado das CEBs, indica elementos possíveis para entender a Igreja em redes de comunidades. Tratamos da percepção de Faustino Teixeira ao explicitar as CEBs como Igreja nascida da base, o papel dos leigos, a aproximação com os movimentos populares e a sintonia entre as CEBs e a instituição eclesial. Neste último aspecto, mostramos quando há sintonia e quando não há, mediante as recentes mudanças na conjuntura eclesial reacionária à abertura do Concílio Vaticano II.
Selecionamos diversos aspectos dos Encontros Intereclesiais que abonam tal perspectiva de redes. A realização do próprio encontro expressa a dinâmica das redes de comunidades. Aflora-se a vivência ministerial da Igreja em tal organização. Revelam-se aspectos teológicos e pastorais referenciais para as comunidades a partir dos encontros. Estes abrangem aspectos ligados à espiritualidade, à comunhão, à participação, ao ecumenismo, ao diálogo inter-religioso, ao profetismo e ao compromisso social. Todos esses aspectos contribuem para a viabilidade das redes de comunidades.
Em seguida apresentamos dificuldades teológicas surgidas ao longo da pesquisa. Entre eles, o monolitismo pastoral, a eclesialidade das CEBs, segundo o questionamento de alguns bispos, e os problemas levantados por Leonardo Boff e Faustino Teixeira quanto à inviabilidade de estruturação da Igreja em redes de comunidades. Quanto aos problemas surgidos, indicamos alguns caminhos possíveis de solução a partir da própria abordagem desses autores e da proposta de Pedro Ribeiro com seus referenciais sociológicos. As CEBs, vistas como unidade estruturante da Igreja, sucedem a função antes assumida pelas paróquias. Assumir as redes de comunidades a partir da base torna-se decisivo para o futuro da Igreja.
O principal referencial teológico da eclesiologia das CEBs refere-se à eclesialidade baseada na comunhão. Não entendida como obediência à autoridade eclesiástica, mas comunidade de serviço e amor cuja categoria teológica estabelece relações horizontais entre os fiéis. A comunhão eclesial impulsiona a participação. Concebe-se a igreja toda ministerial. No novo modo de ser Igreja, ganham as mulheres. Elas encontram espaço de atuar e decidir. Superam-se a discriminação e o preconceito disseminado há séculos na Igreja. Os presbíteros passam a atuar de modo novo. Eles animam e garantem a unidade da comunidade. A função do padre direciona-se a suscitar novas lideranças e a colaborar para os leigos assumirem o protagonismo na comunidade. As mudanças tendem a atingir o próprio bispo. Tornar-se-á próximo das comunidades. Os leigos terão fácil acesso ao bispo, e as decisões na Igreja contarão com a participação de todos os fiéis.
Por fim tratamos das consequências pastorais. Respondemos à pergunta de como funciona, na prática, as redes de comunidades. Vários elementos sugestivos alimentam tal perspectiva. Inclui aspectos internos da vida eclesial e externos ao relacionar as CEBs com Igrejas, religiões e organizações solidárias à luta dos excluídos. No primeiro momento desenvolvemos as redes de comunidades nas relações interpessoais, inteministerial e intercomunitárias. Três aspectos fundamentais e complementares para a organização das redes de comunidades. No segundo momento tratamos da dimensão ecumênica e “macro-ecumênica” das redes de comunidades. Refere-se às relações possíveis entre Igrejas, religiões e culturas. Por último, apresentamos a formação de redes entre as CEBs e as organizações comprometidas com a vida dos pobres. Daí a importância da formação de redes com as pastorais sociais, os movimentos sociais e o movimento ecológico.
As realidades no Brasil reúnem diversas experiências. Multiplicam-se experiências de redes de comunidades. Naturalmente não tratamos disso neste trabalho. Apenas procuramos indicar caminhos possíveis à luz da compreensão de redes e das dimensões a desenvolver-se em tal perspectiva. As redes de comunidades recentemente ocupam centralidade nos planos de pastoral das dioceses. Se bem compreendidas, podem desempenhar progresso na ação pastoral. O risco permanece em torná-las unidades subordinadas às paróquias. Representa colocar “vinho novo em odres velhos” (Mc 2,22). A descentralização das estruturas da Igreja significa desparoquializar a diocese. Romper com a clericalização. Urge favorecer maior participação entre os fiéis. Edificar a Igreja de modo ministerial. Ratificar a opção pelos pobres. Fortalecer a comunhão eclesial. Ampliar a força carismática da Igreja a serviço da missão.
Leonardo Boff, ao concluir sua obra Homem, satã ou anjo bom? escreve: “a utopia vai sempre além de qualquer horizonte dado. A utopia representa a antecipação do que vai ser: a esperança em plenitude” (BOFF, L., 2008, p.220). A Igreja organizada em redes de comunidades não deve ser vista como ilusão ou fantasia. Apresenta-se como utopia, esperança em plenitude, perspectiva viável e decisiva para a presença da Igreja no mundo e cumprimento da missão de anunciar o Reino de Deus. Este, concretizado nas condições históricas atuais. Em tempos de mudanças de época, Moltmann afirma que “no fim, sempre se revela um novo início”. E propõe: “somente seremos capazes de novos inícios se estivermos dispostos a abandonar o que nos atormenta e o que nos falta. Se procurarmos o novo início, ele nos encontrará” (MOLTMANN, 2007, p.9). Eis a decisão de avançar na construção nesse “novo jeito de ser Igreja”.
“Lo que hemos vivido es impresionante, pero si en América Latina no somos atentos a nuestros propios signos de los tiempos, el Concilio pasará al lado de nuestra Iglesia, y quién sabe lo que vendrá después”. Cf. COMISSÃO NACIONAL DOS PRESBÍTEROS. 2007, p.44 (tradução nossa); GUTIERREZ, 1989. p.38.