Artigo de Bruno Forte enviado por D. Édson Damian sobre Charles de Foulcauld
Na escola de Foucauld e de Voillaume, o amor dá um sentido novo à
vida, um sentido até revolucionário, se confrontado com a lógica do
sucesso que domina as ambições do mundo.
A reflexão é do teólogo italiano Bruno Forte, arcebispo de
Chieti-Vasto, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24
Ore, 05-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"C'est à vous, théologiens, de faire parler la charité": foi com estas
palavras que Magdeleine de Jésus me acolheu, a fundadora das
Irmãzinhas de Jesus, quando já há muitos anos fiz algumas aulas de
teologia com essas mulheres consagradas, humilde e corajosas,
provenientes de todas as partes do mundo. "A sua tarefa, teólogos, é
fazer falar a caridade": a verdade dessa afirmação é comprovada pelo
belo livro de um jovem teólogo, sacerdote da Fraternidade Jesus
Caritas, Cruz Oswaldo Curuchich Tuyuc, fruto de uma tese de doutorado
apresentada na Universidade Lateranense, intitulada Charles de
Foucauld e René Voillaume. Esperienza e teologia del 'Mistero di
Nazaret' (Ed. Cittadella).
O propósito do livro é focalizar o valor teológico da vivência
espiritual desses dois grandes testemunhos da fé cristã no século que
há pouco findou: Charles de Foucauld (1858-1916), beatificado em 2005
por Bento XVI, e René Voillaume (1905-2003), que foi, em certo
sentido, o apóstolo mais conhecido do primeiro, juntamente com a já
citada Magdeleine de Jésus.
O impacto de Foucauld sobre a espiritualidade do século XX foi vasto e
profundo, como demonstram as muitas famílias religiosas que se
inspiram nele: não é à toa que um teólogo da estatura de Yves Congar
pôde afirmar que, sob o perfil da experiência espiritual, todo o
século XX foi iluminado por dois faróis, cujas vidas se concluíram na
sua abertura: Teresa do Menino Jesus, a santa da "pequena via" da
caridade, capaz de transformar a mediocridade da existência em um
extraordinário caminho de amor, e Charles de Foucauld, o jovem de boa
família que, depois de uma temporada dissipada e dissoluta,
influenciada pelo encontro com o Islã, conhecido no Marrocos por meio
da fé humilde e adoradora de muitas pessoas simples, se apaixonou por
Jesus e pelo Evangelho, e decidiu imitar seus passos com o compromisso
total da vida.
Nesse esforço apaixonado para seguir o Mestre, o frei Charles foi à
Terra Santa, onde descobriu em particular o mistério de Nazaré como
lugar e tempo precioso da "humanização de Deus". Os anos percorridos
pelo Filho de Deus feito homem no pequeno vilarejo da Galileia se
parecem, ao apaixonado buscador do Absoluto, não tanto com o prefácio
da vida pública de Jesus, mas sim com a forma mais eloquente da Sua
kénosis, a escolha do escondimento e da humilhação que o Verbo fez
para ser um de nós, habitar no abismo da nossa pobreza e preenchê-lo
com a riqueza do Seu amor salvífico.
A mensagem de Nazaré se coloca, assim, no centro da boa nova: a vida
do Filho eterno na nossa carne não é a experiência de um Deus a
passeio entre os homens – quase uma "paródia da humanidade" (Jacques
Maritain) –, mas sim a revelação de uma lógica divina, que subverte a
das grandezas deste mundo. Deus toma o nosso lugar, fazendo Seu o que
pode haver de mais pobre e insignificante entre os homens, para que
todo abismo de miséria humana se sinta alcançado, resgatado e
transfigurado pela Sua caridade.
É essa a leitura original que o frei Charles faz da teoria da
"substituição vicária", que, nos anos vividos no deserto do Saara como
eremita e testemunha do amor de Jesus entre os irmãos muçulmanos, ele
interpretará sempre mais como “badaliya”, termo de origem árabe que
significa justamente substituição e solidariedade. Ele lê sua própria
vocação como seguimento apaixonado do Deus conosco por essa estrada:
"De tal forma Jesus tomou o último lugar que ninguém lhe poderá
tirar". Por isso, afirma sobre si mesmo: "Quero passar sobre a terra
de maneira obscura como um viajante à noite". E ainda: "Viver na
pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar
na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que
viveu assim toda a sua vida e me dá esse exemplo desde o nascimento".
É a escolha dos últimos, dos mais abandonados, dos distantes. Por
isso, deixará a Terra Santa e irá para o deserto do Saara, onde a
pobreza é total, porque falta até a presença corroborante do Corpo
eucarístico de Jesus: torná-lo presente, adorá-lo incessantemente em
uma proximidade de amor simples e verdadeira aos irmãos do Islã, será
agora a tarefa da sua vida, vivida fielmente até a morte cruel, que se
ilumina com as cores do martírio.
Mais tarde, René Voillaume assumirá essa mensagem e a dilatará a todas
as situações de miséria e de abandono da terra, onde chamará os
Irmãozinhos por ele fundados a viver como Foucauld o escondimento de
Nazaré: Au Coeur des masse, a obra que Voillaume publica imediatamente
após a guerra e que o tornará conhecido em todo o mundo, traduzido em
italiano com o título significativo Come loro, fará com que muitos
descubram a via de Jesus como expoliação, solidariedade e substituição
vicária em favor dos últimos.
Na escola de Foucauld e de Voillaume, o amor – ou, como Curuchich
Tuyuc gosta de chamá-lo, "o princípio agápico", revelado na humilhação
do Filho de Deus – dá um sentido novo à vida, um sentido até
revolucionário, se confrontado com a lógica do sucesso que domina as
ambições do mundo.
"Nazaré não é mais só um lugar geográfico, mas sim um estilo de vida,
e essa certeza traz consigo a convicção da necessidade, para a Igreja
de hoje, de 'recomeçar de Nazaré', ou seja, de um retorno ao essencial
da fé". Uma apologia ao silêncio e à escuta, alternativa à barbárie do
barulho e das palavras gritadas, uma afirmação decisiva do primado do
último lugar, contra a corrida de querer ser ou de fingir que se é o
primeiro, um convite à verdade daquilo que somos diante do Eterno, ao
invés de correr atrás das máscaras da aparência e do consenso obtido a
todo custo: essa é a mensagem dessa pesquisa rigorosa e convincente.
Justamente isso, uma mensagem que vale a pena meditar nos nossos dias,
para nos abrir a escolhas de vida contracorrente, as únicas capazes de
dar liberdade e paz ao nosso coração inquieto, para além de qualquer
medida de cansaço e de aparente inutilidade, alternativas a toda
lógica de sucesso a qualquer preço, até a da opressão dos outros por
uma vã e estéril afirmação de si mesmo: justamente isso, um desafio e
uma promessa para todos.
Para ler mais:
Contribuições da espiritualidade de Charles de Foucauld em contexto de
pluralismo cultural e religioso. Entrevista especial com Edson Damian
vida, um sentido até revolucionário, se confrontado com a lógica do
sucesso que domina as ambições do mundo.
A reflexão é do teólogo italiano Bruno Forte, arcebispo de
Chieti-Vasto, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Sole 24
Ore, 05-06-2011. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
"C'est à vous, théologiens, de faire parler la charité": foi com estas
palavras que Magdeleine de Jésus me acolheu, a fundadora das
Irmãzinhas de Jesus, quando já há muitos anos fiz algumas aulas de
teologia com essas mulheres consagradas, humilde e corajosas,
provenientes de todas as partes do mundo. "A sua tarefa, teólogos, é
fazer falar a caridade": a verdade dessa afirmação é comprovada pelo
belo livro de um jovem teólogo, sacerdote da Fraternidade Jesus
Caritas, Cruz Oswaldo Curuchich Tuyuc, fruto de uma tese de doutorado
apresentada na Universidade Lateranense, intitulada Charles de
Foucauld e René Voillaume. Esperienza e teologia del 'Mistero di
Nazaret' (Ed. Cittadella).
O propósito do livro é focalizar o valor teológico da vivência
espiritual desses dois grandes testemunhos da fé cristã no século que
há pouco findou: Charles de Foucauld (1858-1916), beatificado em 2005
por Bento XVI, e René Voillaume (1905-2003), que foi, em certo
sentido, o apóstolo mais conhecido do primeiro, juntamente com a já
citada Magdeleine de Jésus.
O impacto de Foucauld sobre a espiritualidade do século XX foi vasto e
profundo, como demonstram as muitas famílias religiosas que se
inspiram nele: não é à toa que um teólogo da estatura de Yves Congar
pôde afirmar que, sob o perfil da experiência espiritual, todo o
século XX foi iluminado por dois faróis, cujas vidas se concluíram na
sua abertura: Teresa do Menino Jesus, a santa da "pequena via" da
caridade, capaz de transformar a mediocridade da existência em um
extraordinário caminho de amor, e Charles de Foucauld, o jovem de boa
família que, depois de uma temporada dissipada e dissoluta,
influenciada pelo encontro com o Islã, conhecido no Marrocos por meio
da fé humilde e adoradora de muitas pessoas simples, se apaixonou por
Jesus e pelo Evangelho, e decidiu imitar seus passos com o compromisso
total da vida.
Nesse esforço apaixonado para seguir o Mestre, o frei Charles foi à
Terra Santa, onde descobriu em particular o mistério de Nazaré como
lugar e tempo precioso da "humanização de Deus". Os anos percorridos
pelo Filho de Deus feito homem no pequeno vilarejo da Galileia se
parecem, ao apaixonado buscador do Absoluto, não tanto com o prefácio
da vida pública de Jesus, mas sim com a forma mais eloquente da Sua
kénosis, a escolha do escondimento e da humilhação que o Verbo fez
para ser um de nós, habitar no abismo da nossa pobreza e preenchê-lo
com a riqueza do Seu amor salvífico.
A mensagem de Nazaré se coloca, assim, no centro da boa nova: a vida
do Filho eterno na nossa carne não é a experiência de um Deus a
passeio entre os homens – quase uma "paródia da humanidade" (Jacques
Maritain) –, mas sim a revelação de uma lógica divina, que subverte a
das grandezas deste mundo. Deus toma o nosso lugar, fazendo Seu o que
pode haver de mais pobre e insignificante entre os homens, para que
todo abismo de miséria humana se sinta alcançado, resgatado e
transfigurado pela Sua caridade.
É essa a leitura original que o frei Charles faz da teoria da
"substituição vicária", que, nos anos vividos no deserto do Saara como
eremita e testemunha do amor de Jesus entre os irmãos muçulmanos, ele
interpretará sempre mais como “badaliya”, termo de origem árabe que
significa justamente substituição e solidariedade. Ele lê sua própria
vocação como seguimento apaixonado do Deus conosco por essa estrada:
"De tal forma Jesus tomou o último lugar que ninguém lhe poderá
tirar". Por isso, afirma sobre si mesmo: "Quero passar sobre a terra
de maneira obscura como um viajante à noite". E ainda: "Viver na
pobreza, na abjeção, no sofrimento, na solidão, no abandono para estar
na vida com o meu Mestre, o meu Irmão, o meu Esposo, o meu Deus, que
viveu assim toda a sua vida e me dá esse exemplo desde o nascimento".
É a escolha dos últimos, dos mais abandonados, dos distantes. Por
isso, deixará a Terra Santa e irá para o deserto do Saara, onde a
pobreza é total, porque falta até a presença corroborante do Corpo
eucarístico de Jesus: torná-lo presente, adorá-lo incessantemente em
uma proximidade de amor simples e verdadeira aos irmãos do Islã, será
agora a tarefa da sua vida, vivida fielmente até a morte cruel, que se
ilumina com as cores do martírio.
Mais tarde, René Voillaume assumirá essa mensagem e a dilatará a todas
as situações de miséria e de abandono da terra, onde chamará os
Irmãozinhos por ele fundados a viver como Foucauld o escondimento de
Nazaré: Au Coeur des masse, a obra que Voillaume publica imediatamente
após a guerra e que o tornará conhecido em todo o mundo, traduzido em
italiano com o título significativo Come loro, fará com que muitos
descubram a via de Jesus como expoliação, solidariedade e substituição
vicária em favor dos últimos.
Na escola de Foucauld e de Voillaume, o amor – ou, como Curuchich
Tuyuc gosta de chamá-lo, "o princípio agápico", revelado na humilhação
do Filho de Deus – dá um sentido novo à vida, um sentido até
revolucionário, se confrontado com a lógica do sucesso que domina as
ambições do mundo.
"Nazaré não é mais só um lugar geográfico, mas sim um estilo de vida,
e essa certeza traz consigo a convicção da necessidade, para a Igreja
de hoje, de 'recomeçar de Nazaré', ou seja, de um retorno ao essencial
da fé". Uma apologia ao silêncio e à escuta, alternativa à barbárie do
barulho e das palavras gritadas, uma afirmação decisiva do primado do
último lugar, contra a corrida de querer ser ou de fingir que se é o
primeiro, um convite à verdade daquilo que somos diante do Eterno, ao
invés de correr atrás das máscaras da aparência e do consenso obtido a
todo custo: essa é a mensagem dessa pesquisa rigorosa e convincente.
Justamente isso, uma mensagem que vale a pena meditar nos nossos dias,
para nos abrir a escolhas de vida contracorrente, as únicas capazes de
dar liberdade e paz ao nosso coração inquieto, para além de qualquer
medida de cansaço e de aparente inutilidade, alternativas a toda
lógica de sucesso a qualquer preço, até a da opressão dos outros por
uma vã e estéril afirmação de si mesmo: justamente isso, um desafio e
uma promessa para todos.
Para ler mais:
Contribuições da espiritualidade de Charles de Foucauld em contexto de
pluralismo cultural e religioso. Entrevista especial com Edson Damian
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