terça-feira, 21 de junho de 2011

Recensão do Livro Caminhos de Existência

LIBANIO, João Batista. Caminhos de existência. São Paulo: Paulus, 2009 (Coleção temas da atualidade).
A escolha de um livro tem ao menos duas motivações: o tema e o autor. A obra Caminhos de existência congrega a ambas. João Batista Libanio consagrou-se no elenco dos principais teólogos da libertação do Brasil e da América Latina. Jesuíta, professor emérito da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE), escreveu 69 livros discorrendo sobre os mais diferentes assuntos. Recentemente publicou Em busca da lucidez: o fiel da balança e Juventude, seu tempo é agora. A linguagem das suas obras caracteriza-se pela profundidade, ousadia e simplicidade no modo de tratar o tema. A leitura torna-se agradável, permite a reflexão e favorece ao leitor alçar voos.
Caminhos de existência resulta do trabalho do grupo de pesquisa Fé e Contemporaneidade realizado na FAJE. Tal grupo integra o programa nacional de grupos de pesquisa do CNPq. O autor, diante da complexidade do momento atual, interroga quais diferentes caminhos apresentam-se para a existência humana a fim de que o ser humano realize sua vocação e encontre a felicidade. Na introdução, Libanio anuncia a fé humana e teologal como estradas para percorrer tais “caminhos da existência”. Fé humana para ele significa “confiança no existir humano” e Fé teologal como “dom de Deus e acolhida do ser humano”.
O leitor encontrará oito caminhos existenciais. Todos iniciam com breve fenomenologia seguida de análise crítica. Esta propõe oferta, vantagens, problemas, dificuldades e o futuro de tal caminho. Dinâmicas finalizam cada capítulo e estas incluem perguntas para reflexão pessoal ou grupal e breve bibliografia sugestiva para aprofundar o caminho existencial. Nas vias apresentadas, encontram-se itinerários distintos não como oferta de mercado, mas como sugestão para cada leitor “repensar a si mesmo” e avançar na história com maior lucidez.
O primeiro capítulo trata da religiosidade tradicional católica. Ela apresenta uma primeira via de sentido para a vida de fé. O imaginário religioso católico, transmitido há séculos pela Igreja, predomina neste caminho. Valorizam-se na família aspectos como a autoridade paterna e a religiosidade materna. A catequese e o ensinamento do magistério complementam a formação religiosa tradicional. A devoção aos santos e a Nossa Senhora cumpre papel relevante. Predomina a submissão a deliberações normativas de fora do sujeito sem questionamentos profundos. Apela-se para mitos sobre o futuro de salvação e condenação eterna a fim de manter a tranquilidade da consciência dos fiéis. O catolicismo tridentino reforçou ainda mais a religiosidade popular tradicional. O clero assume a função de orientar os fiéis com autoridade inquestionada. A análise crítica do Libanio indica como vantagem de tal caminho a segurança, a tranquilidade e a objetividade confundidos com comunhão. A religiosidade tradicional católica oferece a promessa de “um sentido último, final e global para a vida na terra e além dela”. Libanio vê como limite nesse caminho restrições à liberdade e à autonomia do sujeito. O futuro de tal caminho tende a desaparecer, embora resquícios surjam resistentes em novas estradas.
O segundo capítulo apresenta a via cristã da secularização existencial em busca de um humanismo. A existência precede a essência. Privilegia-se a consciência em relação às normas. A tradição cede lugar à decisão autônoma. Apresenta-se tal caminho na esteira da virada hermenêutica do sujeito em que se valoriza a razão científica, a subjetividade e a autonomia. Os cristãos optam por tal via certos de que realizam a fé cristã. Reconhecem a fé anônima naqueles que não crêem. Não admitem o estereótipo de secularismo, embora, em sentido material, aproximem-se dele. Em relação às instituições autoritárias, surgem crises. Libanio ainda afirma que, nesse caminho, “valorizam-se as realidade humanas, terrestres e a realização pessoal”. Revela-se a busca de autenticidade e veracidade. Supera-se a concepção teística de Deus. Privilegia-se a dimensão existencial do ser humano e opta-se pela vida de Jesus. Deus que se fez gente. A análise crítica aponta tal caminho válido para ateus e cristãos. Mostra o valor da imanência do humanismo sem perder a transcendência nele contido. O risco aparece quando, ao acentuar o existencial, cai-se no subjetivismo. Perde-se a dimensão da alteridade e pouco se valoriza o social. Com a ascensão da cultura pós-moderna, tal caminho tende ao crescimento e a maior adesão.
A via ateia militante e sapiencial como realização humana constitui-se como tema do terceiro capítulo. A negação de Deus torna-se necessária para a felicidade humana. Aparecem duas tendências: o ateísmo aguerrido e o sapiencial. No primeiro, combate-se a crença em Deus. A partir daí, constrói-se novo caminho. O ateísmo sapiencial não combate a Deus, pois não reconhece tal necessidade. Apenas apresenta a sabedoria humana que conduz naturalmente à supressão de qualquer crença na existência divina. Libanio recorre a alguns autores para falar de uma espiritualidade ateia. Apresenta como vantagens de tal caminho a responsabilidade intransferível dos atos humanos sem recorrer a qualquer transcendência e a libertação das culpas impostas pelas religiões através da moral negativa de um Deus punitivo. O autor lança como dificuldade da via ateia o terrível anúncio da morte. Ampliam-se perguntas sem respostas diante do sofrimento humano, das injustiças sociais e do crescimento da pobreza. O silêncio do presentismo de tal caminho não oferece possibilidades para tais problemas. O futuro desse caminho liga-se à cultura do consumismo. Haverá futuro para uma sociedade neoliberal pautada nesse paradigma?
O compromisso social cristão aparece como caminho de existência desenvolvido no quarto capítulo. Nutre-se da teologia da libertação. A fé cristã e eclesial manifesta-se na caminhada das CEBs e das pastorais populares. Caracteriza-se tal caminho pela desconstrução de práticas religiosas alienantes e explicita-se a opção pelos pobres em perspectiva da sua emancipação. Revela-se o caráter libertador da fé. Cristãos que optam por tal caminho articulam-se em movimentos sociais na luta contra o sistema capitalista e na construção de nova sociedade. “Propugna-se por uma terceira revolução da subjetividade para além da pós-modernidade em que o aspecto relacional seja o fundamental e não a pura interioridade das consciências e liberdades”. Como vantagem de tal caminho revela-se o “sentido altruísta que habita o coração humano”.  A exemplo da vida de Jesus, os seguidores dessa via conduzem seus passos envolvidos de compaixão pelo sofrimento e pelo grito dos empobrecidos. Somam-se o compromisso ético e o engajamento sociopolítico. A desvantagem está no ambiente pós-moderno que afasta os cristãos desse compromisso. Proclama-se o fim da história e nega-se qualquer utopia. Eis a ditadura do presentismo. Libanio, ao ver o futuro de tal caminho, sublinha que não há nada que aponte o reavivamento dessa via manifestada com entusiasmo em décadas anteriores.
O quinto capítulo trata da via da religiosidade moderna e pós-moderna carismática, passando pela experiência do convertido até o neopaganismo. A tese central do capítulo baseia-se na teoria de Denis Lecompte. A efervescência religiosa atual corresponde a “um colorido pagão natural”. Libanio reconhece o valor da busca religiosa após a crise do socialismo, mas explicita em tal busca o reaparecimento do paganismo sob diversas formas. A oferta desse caminho aponta respostas imediatas ao momento atual da cultura pós-moderna. Autonomia do sujeito, expressão livre da religiosidade e negação da institucionalidade religiosa revela o clima de tal via. Como desvantagem, a religiosidade moderna e pós-moderna carismática caminha em lado oposto à via anterior. Busca-se consolo em práticas espiritualistas e esconde-se o caráter ético e solidário do evangelho. A trajetória espiritual prometida revela-se anticristã e neopagã. Como futuro, tal via encontra força na atualidade devido às características próximas da condição pós-moderna próprias do tempo presente.
Apresenta-se no sexto capítulo a via do “tudo vale”, até a perversidade da transcendência. Caminho da subjetividade ao extremo. Para satisfazer o gozo, o prazer imediato e a felicidade banal, tudo vale. Acentua-se o imperativo da realização dos sentidos. J. Guillebaud fala da tirania do prazer. O aspecto principal sintetiza-se “no equilíbrio da tensão entre a vida dos sentidos e o desejo ilimitado”. Desenvolve-se em tal via a perversão da transcendência. O desejo se satisfaz não apenas na imanência da sabedoria do amor, mas na vulgaridade de saciar a qualquer custo os próprios instintos. Revela-se nesse caminho extremo hedonismo, a radicalização do presentismo e a explosão da satisfação imediata do prazer. Numa análise crítica, Libanio explicita como tal via desmascara a cultura atual. Ajuda-nos a compreender melhor a cultura pós-moderna com seus desvios decadentes e doentios. O cinismo caracteriza a via do “tudo vale”. Na concepção darwiniana, o cinismo representa a negação da emersão da consciência. Leva o ser humano ao afastamento do seu profundo desejo de convivência com os outros. O egoísmo torna-se um inferno. O futuro promete o esgotamento de tal via, pois esta não suporta o cinismo globalizado. Prosseguir em tal caminho representa a morte da cultura e da humanidade.
Em escala crescente, surge novo caminho de existência. A via virtual aparece como tendência predominante. Substituem-se as relações pessoais, face a face, pelas relações virtuais a partir das novas tecnologias da comunicação. O abraço apertado, o beijo na face, a boa conversa olho a olho cede espaço para os encantos da telefonia celular, da internet e das redes de relações virtuais. Acende-se novo tipo de liberdade. Depende unicamente da decisão pessoal. Enquanto há prazer, permanece-se conectado. Ao menor sinal de infelicidade, basta “deletar”. Na análise crítica de Libanio, contata-se que as novas tecnologias da informação revolucionaram a vida em vários aspectos. Transformaram a economia mundial, mostram-se promissoras no campo intelectual e profissional, revolucionaram os meios de produção, permitem superar os excessos da subjetividade e contribuem para democratizar os meios de comunicação. Surgem dificuldades nesse caminho. Explodem páginas virtuais com incentivo à pornografia, consequentemente ampliam-se as patologias sexuais; hackers invadem a intimidade dos navegadores, contas bancárias encontram riscos de privacidade. Libanio aponta um futuro tenebroso. Tudo se reduz ao virtual. Assombra-nos a irresponsabilidade diante da vida, da convivialidade e do compromisso social.
O último caminho proposto pelo autor trata da via do profissional, do executivo, do homem da instituição (clero; yuppie). A vida centra-se na profissão. A família, o sucesso, o dinheiro, a glória e o poder dependem da realização profissional. A vocação para determinado trabalho torna-se secundária. Priorizam-se o estudo, a especialização e o reconhecimento social através do acúmulo dos títulos. Examinam-se com atenção o prestígio e a capacidade de liderança. Ocorre verdadeira jornada de sucesso e frustração. Tal caminho apresenta-se profícuo na sociedade atual diante da lógica da concorrência. Sobressaem-se na profissão os melhores. A qualificação e a especialização garantem sucesso e sensação de segurança. Por outro lado, “paga-se alto preço existencial pelo sucesso”. Aqueles que optam por esse caminho existencial tendem a alcançar resultados econômicos altos e a sentir o vazio das relações próximas e da convivência pessoal. O futuro de tal caminho acena-se duvidoso. Pode alcançar duplo destino, a “extrema profissionalização” ou a “reação humanizante.
Livro bem fundamentado. Esbanja possibilidades para a reflexão. Consegue apresentar questões existenciais com propriedade, espírito crítico e aponta perspectivas. Excelente obra para leitura pessoal ou grupal. Recomendado para lideranças pastorais, orientadores espirituais e leitores interessados em livros de espiritualidade.



Daniel Higino Lopes de Menezes
Belo Horizonte, 30 de agosto de 2010.

Este texto foi publicado na REB Jan/2011 nº 281.

0 Comentários:

Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]

<< Página inicial