Após o último consistório, resolvi reler alguns artigos do mês passado e encontrei esse para disponibilizar para vocês leitores do Blog do Higino.
Estratégias
para se defender contra a ofensiva conservadora na Igreja
Um grupo de cristãos de Quito
reflete sobre como resistir ao tsunami conservador que arrasa, na Igreja
Católica, todos os movimentos de base e a Igreja dos Pobres. E isso não só no
Equador (lembre-se de Sucumbíos), mas sim em toda a América Latina e em outros
países como a Espanha. É preciso ser simples como as pombas, mas astutos e
realistas para combater o esmagamento e a marginalização que vêm do Vaticano.
O texto foi publicado no sítio
Atrio, 11-01-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A Igreja dos pobres e a ofensiva conservadora:
Lições e dilemas da nossa estratégia
Comissão de Vivência, Fé e
Política, junho de 2011
A América Latina foi vista
recentemente como o único continente que passou da resistência à construção de
alternativas ao neoliberalismo. No entanto, a política econômica dos governos
"progressistas" deixa ver que, embora as políticas implementadas se
afastem do neoliberalismo em sua versão ortodoxa, ao mesmo tempo distam de ser
uma alternativa ao capitalismo mundial.
No Equador, o verdadeiro
horizonte do governo é uma economia extrativista com exploração mineira em
grande escala. O grande desafio dos movimentos populares e de esquerda é se
converter em fatores decisivos que pressionem por uma mudança radical e
profunda que sente as bases para uma sociedade pós-capitalista. Tal desafio é
mais complexo e difícil quando esses movimentos têm que enfrentar não só a ação
da direita, mas também a repressão e a perseguição desses mesmos governos
"progressistas".
No plano eclesial, assistimos a
um dos momentos mais altos da ofensiva conservadora liderada pelo Vaticano. A
vertiginosa ascensão aos altares de João Paulo II, principal gestor da
contrarreforma eclesial, simboliza essa ofensiva. O Vaticano posiciona os
movimentos eclesiais mais conservadores como o Opus Dei ou os Arautos do
Evangelho (Tradição, Família e Propriedade) em antigas dioceses progressivas
com a finalidade expressa de liquidar tudo o que resta da teologia da
libertação. Apesar das resoluções em certa medida progressistas da V
Conferência do Episcopado Latino-Americano, realizada em Aparecida, em maio de
2007, as estratégias de resistência dos grupos populares eclesiais foram
extremamente fracas.
O conflito na Igreja de Sucumbíos
mostra a fragilidade e potencialidade dos processos libertadores perante a
ofensiva conservadora. A importância da expulsão dos Arautos do Evangelho não
pode ser minimizada. É uma grande conquista da resistência da Igreja dos Pobres.
Não era fácil conseguir isso, e todos devemos nos felicitar e felicitar os
irmãos da ISAMIS. Mas, no fundo, persiste um problema de estratégia. No fim dos
anos 1960 e início dos anos 1970, a Igreja latino-americana pretendia fazer da
Igreja Católica uma "comunidade de comunidades". Essa pretensão
fracassou. Como bem propôs José Comblin quando nos acompanhou no Primeiro
Encontro da Igreja dos Pobres, em 2006, "era ingênuo pensar que toda a
Igreja se transformaria em uma comunidade de comunidades pobres. Isso era
ignorar a história".
Devemos rever essa estratégia
urgentemente. Um olhar aos processos eclesiais populares que vivemos nos
permitirá identificar os principais dilemas estratégicos que enfrentamos e nos
servirá para retificar com vistas a criar as condições básicas para resistir em
melhores condições à ofensiva vaticana.
Apresentamos à discussão a nossa
leitura de quais são esses dilemas centrais e quais são os desafios para uma
estratégia renovada.
- Trabalhar em silêncio versus
opção profética
Até agora, amplos setores da
Igreja dos Pobres caminharam subordinados à institucionalidade eclesial,
buscando "não fazer ondas", evitando os enfrentamentos abertos, as
confrontações públicas e midiáticas. O custo dessa estratégia foi renunciar a
um testemunho profético público e aberto. Essa estratégia, sem dúvida,
contribui para construir estruturas locais de base, ganha-se tempo e se evita a
intervenção da hierarquia conservadora, enquanto se desenvolve um trabalho de
base que requer um papel ativo e uma liderança do clero. Mas, a longo prazo, se
renuncia à ação profética pública e se sacrifica a possibilidade de contribuir
para criar um imaginário social de uma Igreja distante do poder hegemônico,
próxima dos interesses populares e dos processos de luta social. Uma Igreja
que, como ocorreu durante os tempos de Dom Leônidas Proaño, em momentos de
conflito, pode ativar uma rede estruturada de apoios políticos, uma importante
mobilização social e ganhar a opinião pública de amplos setores.
- Trabalho local versus trabalho
nacional
Até agora, a maioria da Igreja
dos Pobres privilegiou o trabalho paroquial, a organização local e, no melhor
dos casos, uma estratégia confinada ao âmbito diocesano. Carecemos de espaços
de articulação nacional com estruturas próprias. O trabalho da Igreja Popular é
prioritariamente localista e paroquial. Poucos estão dispostos a avançar em
processos nacionais reais, em redes de comunicação, em estruturas que possam
ativar a solidariedade entre os grupos locais. Os poucos vínculos continentais
desenvolvidos muitas vezes são apenas formais, sem que existam estruturas
nacionais funcionais e efetivas. O resultado tem sido, então, um processo
organizativamente fraco, disperso e politicamente vulnerável, sem lideranças
públicas aceitas e reconhecidas.
- Estruturas autônomas versus
pertencimento à Igreja institucional
Em muitas ocasiões, viu-se com
desconfiança a demanda de criar estruturas autônomas, independentes da
instituição eclesiástica. Considerou-se isso como uma ameaça à unidade eclesial
ou uma falta de identidade da Igreja. No entanto, a verdade é que os únicos
processos que sobreviveram depois das ofensivas conservadoras foram as
estruturas construídas com autonomia frente à instituição eclesial. Sua
autonomia inclui os aspectos econômico, político e ideológico, e sua dinâmica
não responde às necessidades e aos interesses institucionais. Praticamente
todas as estruturas construídas sobre a base da dependência eclesial, se
sobreviveram, o fizeram renunciando ao compromisso libertador.
Isso é evidente no Equador. Dois
bispos diferentes, ambos progressistas, com dois estilos diferentes e com
resultados semelhantes. Dom Leonidas Proaño, com forte ação profética pública,
que teve um alcance nacional e mundial. Sua ação pública lhe custou não poucos
enfrentamentos abertos com seus companheiros de episcopado e perseguições por
parte do poder político e econômico. Por outro lado, Dom Gonzalo López Marañón,
com uma ação pastoral silenciosa, sem fazer ondas, sem mais denúncias públicas
do que as estritamente necessárias e quase unicamente desenvolvidas dentro do
âmbito diocesano, com uma ação pastoral quase desconhecida, ou conhecida
unicamente dentro dos âmbitos progressistas da Igreja.
Os resultados em ambas as
experiências são visíveis: em Chimborazo, o que pôde escapar das mudanças
institucionais foram as organizações indígenas e populares que criaram suas
próprias estruturas independentes da instituição, como o Movimento Indígena de
Chimborazo. As que se chamaram de "Igrejas vivas" (comunidades
indígenas que incluíram em suas dinâmicas sociais a leitura do Evangelho)
sobreviveram com dificuldade, em muitos casos, devido às dependências que
tinham frente aos sacerdotes que faziam às vezes de dinamizadores e ofereciam
legitimidade e confiança à organização. As Comunidades Eclesiais de Base
virtualmente desapareceram, embora alguns tenham sobrevivido em condições
totalmente marginais, resistiram e existiram à espera de um algum sacerdote que
chegasse em seu auxílio. Mas a dinâmica da Igreja de Riobamba sofreu um
retrocesso radical: mais sacramentos, menos organização popular, mais Igreja,
menos sociedade nova.
Algo parecido acontece em
Sucumbíos. Perante a chegada brutal e impiedosa dos Arautos do Evangelho, a
resistência mais estruturada foi organizada a partir da Federação de Mulheres
de Lago Agrio: a principal trincheira para enfrentar a ofensiva conservadora
são as organizações populares e as organizações da sociedade civil, apoiadas e
sustentadas, sem dúvida, pelas comunidades eclesiais de base. Embora nesse caso
ainda não se saiba o desenlace final e a forma como as CEBs ficarão, é claro
que qualquer que ele seja, as organizações eclesiais existirão enquanto
permaneçam sacerdotes, religiosas ou organizações religiosas afins a seus princípios
pastorais. Depois da importante vitória da resistência ao expulsar os Arautos
do Evangelho, é razoável supor que o Vaticano irá nomear um bispo progressista
afim à Teologia da Libertação? Com certeza, a resposta é não. Embora não se
possa descartar que algum milagre ocorra, o mais provável é que o sucessor
definitivo provenha de setores moderados ou conservadores que realiza as
mudanças mais pausadamente, mas de forma igualmente implacável.
Isso é o que ocorreu em todas as
partes, de Riobamba a Los Ríos, de Guaranda a Cuenca. O resultado certamente
será o mesmo: as estruturas construídas sob o amparo eclesial não resistem a
uma mudança hierárquica. O caso da Rádio Sucumbíos é o melhor exemplo de um
reiterado erro estratégico: deixar as estruturas libertadoras nas mãos da
Igreja quando a sua propriedade poderia ter sido transferida para as mãos dos
leigos, de alguma comunidade com personalidade jurídica própria ou de alguma
organização social. Nenhuma luta social tem garantias, mas é claro que há melhores
oportunidades para resistir às mudanças impulsionadas pela hierarquia
conservadora quando há autonomia laical.
Os dilemas estratégicos que
mencionamos são verdadeiros, e ninguém tem a fórmula mágica para fazê-los
desaparecer. As estratégias silenciosas, paroquiais e internas da Igreja podem
exibir conquistas importantes. Mas chegaram aos seus limites perante a pressão
conservadora da Igreja. É hora de rever esses aspectos estratégicos para que,
em cada setor, a Igreja libertadora e as organizações populares estejam em
melhores condições de resistir e de construir alternativas.
Precisamos de estruturas
nacionais? Como devem ser? Precisamos de uma voz pública? Quem deve se lançar
para ganhar a opinião pública? Precisamos de estruturas autônomas frente à
Igreja? Quais e como sustentá-las? Acima de tudo, para modificar nossas
estratégias devemos pôr de volta no lugar o essencial: o caráter
"Reino-cêntrico" da Igreja dos pobres. O central é construir o Reino,
"o resto virá por acréscimo".
Portanto, é preciso relativizar a
institucionalidade eclesial, sua estrutura, suas práticas, sua mensagem
distorcida que trai a do Evangelho. É preciso combater decididamente a dinâmica
hegemônica da Igreja. E tudo isso deveria ser pensado à luz das lutas
históricas das vítimas do sistema, não a partir do interesse eclesial, mas sim
da necessidade urgente de combater o sistema capitalista em crise, que gera
todo tipo de desigualdades. A Igreja dos pobres deve ser um instrumento a mais,
junto com muitos outros, desse processo de construção histórica do Reino de
Deus.
Ihu online, 17.01.2012